Derrota, Servidão e Inocência: A Infra-Constituição dos Marcadores Tonais e Posturais


Volto a entrar num sítio habitual e sou saudado de forma costumeira por conhecidos. Eis uma situação exposta ao estado de espírito do momento. Ora nos parece reconfortante, ora rotineira, ou até algo estranha quando, por alguma razão, nos sentimos afastados dos nossos semelhantes. Dificilmente um tal evento se prestará a grandes entusiasmos, até porque, apesar da sua plasticidade, encontra-se, à partida, marcado pelo selo da repetição.
Todavia, os rituais associados a estes reencontros correntes são da maior importância. É neles que se estabelece e reforça o tom do espaço social partilhado, a atitude admissível ou, ao contrário, o tom e a atitude que constituiriam uma ruptura com o que os membros de uma sociedade estão dispostos a aceitar e reconhecer como inteligível. A estes rituais poderíamos chamar, com alguma conveniência, pompa e, porventura, humor, os Marcadores Tonais e Posturais (MTP) do trato social.
Longe de se tratar de meras exterioridades alheias àquilo que alguns figuram como a verdadeira liberdade interior, esse tom e essa atitude socialmente sancionados e constantemente reiterados pelos MTPs condicionam directamente o estado “interno” ou, se quisermos, a disposição, o próprio substrato das possibilidades que nos são mais próprias. O facto de a disposição se declinar sobretudo no registo do sentimento não lhe retira nada da sua objectividade.
A maioria insegura gosta de acreditar que os seus actos e decisões, e mesmo, aquém destes, as suas disposições, nascem de uma espécie de jogo entre a sua vontade e o seu carácter, preferindo minimizar o efeito do ambiente em que vivem. Para essa ilusão concorre a relativa constância do meio e a inconsciência à qual é possível relegar os efeitos regulares que este exerce sobre nós.
A atitude característica dos meus concidadão face ao que é fundamental e determinante tem sido ultimamente exemplificada pelas reacções à iniciativa de revisão da Constituição lançada pelo líder de um dos dois maiores partidos políticos portugueses. Consoante aquilo de que se está a falar, a Constituição ora é vista como absolutamente irrelevante, ora é tratada como uma vaca sagrada.
No primeiro caso, a Constituição é encarada na sua continuidade. Neste modo, a sua eficácia é relativamente invisível, sobretudo na medida em que o Legislador tem sempre o cuidado de evitar acusações de inconstitucionalidade. Ou seja, a eficácia da Constituição varia na razão directa da sua imperceptibilidade.
No segundo caso, ela é encarada na sua mudança. E perante a possibilidade da sua mudança (efectiva e não apenas cosmética), dir-se-ia que a Constituição se torna capaz de escancarar as próprias Portas do Inferno. Chovem acusações emotivas de “golpe de Estado” quando, na realidade, estão apenas em causa orientações políticas (que, segundo muitos, não caberia sequer ao texto constitucional definir) e não de Regime.
Não pretendo aqui inscrever-me no debate de facção sobre os méritos relativos das diferentes mudanças constitucionais em causa (deixo aos meus concidadãos a laboriosa tarefa de não o fazer). Apenas pretendo servir-me dos múltiplos paralelismos entre a Constituição da República e os Marcadores Tonais e Posturais (MTP) do trato social  para melhor esclarecer a importância destes últimos e mostrar o quão urgente é, de uma vez por todas, cometer o sacrilégio de os não negligenciar.
Conforme acima assinalei, os reencontros rotineiros são um espaço privilegiado para surpreender os MTPs em pleno funcionamento e para ter uma noção do seu impacto imperioso sobre a disposição e, por conseguinte, sobre as possibilidades vitais de cada um e, a fortiori, de todos.
Mas atenção: um tal exercício envolve alguns requisitos e, nomeadamente, a posse de uma experiência contrastante em matéria de MTPs, ou seja, de uma autêntica experiência intercultural. De outro modo, é difícil identificar um MTP, e mais difícil ainda é avaliar-lhe a influência sobre a disposição, tanto dos indivíduos quanto dos espaços sociais por estes partilhados, i.e. sobre a configuração das possibilidades dos primeiros e dos segundos.
Estas explicações são necessárias para ultrapassar a primeira impressão suscitada pelos MTPs — a da sua insignificância: “E depois?”
Entro num espaço que frequento e cruzo olhares com um conhecido.
“Olá, tudo bem?” pergunta um de nós.
Tem de ser!” responde o outro[1].
Ou então, em vez das palavras de um e do outro, temos um erguer de ombros sucinto, acompanhado de um arquear de sobrancelhas, que responde, ou ao qual responde, um sorriso.
Em situações mais dinâmicas, como quando as pessoas se cruzam no decorrer de tarefas, outra expressão veicula o mesmo significado: um dos “interactantes” arregala os olhos e arqueia as sobrancelhas enquanto aperta os lábios numa linha.
Restrinjo-me aqui às interacções de passagem a que aludi inicialmente, mas teria todo o cabimento acrescentar algumas outras rotinas comportamentais que vão no mesmo correr do pêlo, por assim dizer. É o caso quando alguém conta a outrem uma experiência envolvendo escolhas de natureza moral, e esse “outrem” abana a cabeça afirmativamente, arqueando as sobrancelhas e semi-cerrando muito ligeiramente os olhos enquanto aperta mais uma vez os lábios em linha.
Na mesma linha cabe recordar uma expressão cuja origem é provavelmente francesa mas que se aclimatou ao espaço social português como poucas outras. Falo do “É a vida!
Como se vê, é sempre a mesma ideia que os Portugueses declinam de inúmeras maneiras, de forma obsessiva, insistente — e, dir-se-ia mesmo, fanática, se, por acaso, essa ideia fosse, ou pudesse ser, um objecto de controvérsia e não uma evidência tão batida, constante e revelha que duvidar dela equivalesse a duvidar do ar que se respira.
É claro que, a mesma pessoa que se entrega a todo este ballet do desencorajamento é capaz, um segundo depois, de proferir um discurso enfático sobre as virtudes do seu país ou dos seus concidadãos. Todavia, trata-se, quase sempre, em tais casos, de palavras de conveniência de que o seu autor é o primeiro a descrer, ou então de tentativas vãs de auto-convencimento através da persuasão alheia, no espírito dos velhos hábitos do proselitismo cristão. O corpo, que sabe sempre melhor, não tarda a erguer mais uma vez os ombros.
É contudo um erro reduzir a mensagem predominante dos MTPs a uma simples e abstracta auto-depreciação da nacionalidade. Esta é decerto conhecida e reconhecida pelos Portugueses — Mário Soares lamenta-a frequentemente, pelo que, num certo sentido, a repete — e pelos estrangeiros: Lembro-me de Louella, uma correspondente multilingue de Henry Miller, que optou por escrever em Português porque, para além de considerar tratar-se de uma língua “rica” — o que é defensável, — admirava os Portugueses por estes “se porem para baixo em vez de se incharem todos[2].” O sentido deste “porem-se para baixo,” que é o sentido reiterado pelos MTPs acima descritos, é porém mais fundamental, mais visceral, e a referência à nacionalidade não passa de um ornamento reflexivo inteiramente secundário.
A mensagem dos MTPs portugueses é uma mensagem de derrota, de inocência e de servidão.
O “tem de ser,” que tão facilmente se profere face às mais variadas circunstâncias que envolvam qualquer espécie de trabalho, de penosidade ou de esforço, é o lema do servo. E toda a gente sabe que o servo o é por ter sido, ele próprio ou um seu antepassado, derrotado, e que, não sendo senhor dos seus actos, é ou presume-se inocente na sua obediência forçada.
Ninguém questiona o “tem de ser.” Seria impensável. A bem dizer, o “tem de ser” — “tem de ser!”
Alguns gostam mesmo de apimentar a expressão com uma variante que desceu dos media na noite dos tempos. É uma espécie de corroboração. A alguém que vos diz: “Tem de ser,” podeis responder: “E o que tem de ser tem muita força!” com o maior dos sucessos. É considerado uma marca de humor e de camaradagem. Em linguagem tabu é como se a primeira pessoa dissesse: “Sabes, não tenho escolha nem culpa: sou um servo,” e a outra pessoa respondesse: “Co’a breca, pois és!” e ambos achassem a coisa muito divertida, quais verdadeiros soldados Schveik.
É claro que, se o “tem de ser” exprime a servidão, também exprime derrota. “Tem de ser!” Eu não me debato nem me revolto: assumo o jugo. Mesmo quando é incongruente. Afinal, quem pode sentir-se forçado por poderes soberanos a passear com a família à beira-mar num sábado à tarde? Resposta: um Português. Senão, basta ouvi-los:
“Então a passear com a família?”
“Pois é, tem de ser!
Não escapará ao observador que, mesmo em tais circunstâncias extremas, o “tem de ser” nunca é questionado na sua legitimidade (quem se atreveria?), mas que é muitas vezes acompanhado por um sorriso partilhado. Como se aquilo que na realidade é um prazer e um privilégio necessitasse ou, pelo menos, beneficiasse de uma espécie de desculpa proporcionada pelo inquestionável “Tem de ser.”
E se os diferentes MTPs mencionados exprimem todos a derrota, a servidão e a inocência, o encolher de ombros parece-me mais emblemático desta última. O conhecido que espera à minha frente na fila da tabacaria é manifestamente inocente. Assim que me vê e reconhece, esboça um sorriso e, aludindo imperceptivelmente à situação com o olhar, encolhe os ombros. Se estivesse mais próximo de mim, dizia-me o que tinha vindo fazer, esperava eu lhe dissesse o que tinha vindo fazer, e remataria com um certeiro “Tem de ser!
Esta é, aliás, uma marca corrente de aprovação. Em conversa miúda com um conhecido que encontramos na rua, dizemos algo sobre o que temos feito ou andamos a fazer. Suponhamos que se trata de um assunto em que encontramos algumas resistências ou dificuldades, e em que tivemos de tomar alguma medida drástica. De sobrancelhas arqueadas, boca apertada e olhos, neste caso, não semi-cerrados mas até mais abertos do que o normal, significando um claro e compreensivo estou a ver, o nosso interlocutor acena afirmativamente com a cabeça enquanto nos ouve.
 Sentindo porventura alguma incerteza na nossa voz, apressa-se a reconfortar-nos: “Tem de ser!
É como se nos dissesse, em linguagem tabu: “Estás inocente! Qualquer servo no teu lugar faria o mesmo.
Entre estas conversas, claro, continuamos a cruzar-nos com conhecidos que rotineiramente erguem os ombros em nossa intenção e a quem, mais tarde ou mais cedo, erguemos os nossos, quando não temos a presença de espírito de nos desenrascarmos com um sorriso ou, pelo menos, em caso de menor ânimo, com um erguer de sobrancelhas grave, acompanhado de um desvio do olhar para baixo e ligeiramente para o lado e de uma inspiração profunda.
E não esqueçamos uma resposta eventual ao “Tem que ser,” mas que por vezes serve de seu sucedâneo: o bom e velho “Que remédio!” Não é afinal este Vale de Lágrimas uma espécie de doença que a morte virá um dia curar? Entretanto, lá nos vamos tratando com aplicações regulares de “Tem de ser!”
Muito embora não tenha sido a minha intenção, não duvido que alguns dos meus leitores experimentarão algum desconforto com as minhas palavras — uma susceptibilidade que pode ser proveitosamente comparada àquela que é ferida pela perspectiva de quaisquer mudanças substantivas na — de outro modo “irrelevante” — Constituição da República.
Como os Marcadores Tonais e Posturais (MTP) do trato social,  a Constituição também exerce uma influência profunda, constante e invisível sobre as nossas possibilidades de existência. Há, no entanto, diferenças importantes que não convém escamotear.
A mensagem de derrota, inocência e servidão dos MTPs é muito mais fundamental do que a Constituição, sendo-lhe lógica e temporalmente anterior. Essa anterioridade deixou aliás as suas marcas óbvias no próprio conteúdo da Constituição Portuguesa. Dos três valores republicanos institucionalizados pela Revolução Francesa, a igualdade é nitidamente privilegiada no texto constitucional. A fraternidade está claramente subordinada à igualdade, ao passo que a liberdade se faz notar pela sua ausência. Quando muito, dispõem-se regras e princípios para evitar a sua privação abusiva...
Que sentido tem para o derrotado e para o servo a liberdade senão o de um ironia? E de que sentimentos fraternos é capaz aquele que, mais do que estar derrotado e temporariamente reduzido ao arbítrio alheio, sente a derrota e a servidão inscritas no seu âmago?
E o que é a inocência axiomática, de princípio, senão a denegação obstinada de um sentimento profundo de culpa? Um tal inocente não pode nunca aspirar a distinguir-se pelo mérito, uma vez que, no fundo de si mesmo, está convencido das suas intrínsecas culpa e falta de valor. No máximo, pode aspirar à partilha da sua inocente culpabilidade — ou culposa inocência — na condição de as parcelas serem estritamente iguais, não vá alguém ter razões para apontar o dedo a outrem! (“E de lutas estamos nós fartos, não fosse a derrota a nossa única esperança!”)
Somos todos iguais, somos todos inocentes!” clama o inocente igualitário — ou clamaria, se pudesse empregar linguagem tabu sem expor as suas “vergonhas,” i.e. aquele dedito apontador...
(São superficiais as teses segundo as quais esses impulsos igualitários seriam o resultado da experiência histórica da exploração. As razões são mais recônditas. O explorado tem primeiro de ser educado pelo igualitário esclarecido. Este não está ressentido porque o roubaram mas sim porque se roubou a si próprio. Eis a verdadeira força oculta que lhe ergue o dedito apontador...)
Fica assim patente ou, pelo menos, ilustrada, a medida na qual um documento como a Constituição da República é tributário do solo existencial que a mensagem de derrota, inocência e servidão dos MTPs constitui. Ficamos também justificados se quisermos ver os MTPs como uma Infra-Constituição cuja relação com a Constituição e a sua fabricação é comparável à relação da Constituição com o corpo de leis da República e a sua confecção.
No tamanho: a Constituição é um breve texto quando comparado com a multiplicidade de leis que enquadra. Do mesmo modo, o que são um “Tem de ser!” , um encolher de ombros e duas ou três quejandas brevidades quando comparados com a extensão e o detalhe do texto constitucional!
Na eficácia: já visitámos este ponto.
Na relação de apagamento: Se a influência da Constituição no condicionamento da produção legislativa é quase imperceptível fora das oficinas legais (Parlamento, Ministérios e Tribunal Constitucional — quando este é acordado do seu torpor), a ponto de poder sustentar-se, publicamente, e com cara séria (e até por um desses “constitucionalistas” de voz trémula!), que não há relações óbvias entre o disposto  (e o não-disposto) na Constituição e a situação em que se encontra o país, — a influência da Infra-Constituição dos MTPs na fabricação da Constituição de Abril e em tudo o resto é, quanto a ela, tão imperceptível, tão invisível, que acaba por ser completamente desconhecida.
Tão indiscernível é a acção dos MTPs que faz lembrar o sínico Tao. Só que, em vez do incomensurável equilíbrio dos contrários — que faz dos Chineses o único povo capaz de passar por uma fase de capitalismo selvagem sob a férula de um Partido Comunista, — o que temos por estas bandas é a derrota, a servidão e a inocência servida a golpes de “Tem de ser!” e de encolher de ombros.
Ao contrário do Tao, a mensagem dos MTPs não merece ser a raiz profunda de uma cultura. Se “O Tao que se pretende alcançar não é o próprio Tao[3],” isso deve-se à sua natureza profunda e insondável. Mas se a mensagem dos MTPs se esconde, não declarada, atrás de cada obstinado “Tem de ser” e de cada insistente encolher de ombros, tal não se deve à sua subtil imponderabilidade mas sim à vergonha que experimentaria em reconhecê-la quem lhe dá, quotidianamente, voz e corpo.
Se esta Constituição não é nem merece ser uma vaca sagrada, o solo existencial de derrota, servidão e inocência sobre o qual aquela repousa não merece ser a Terra de nenhum povo.
Vale a pena rever a Constituição da República. É mesmo urgente metamorfoseá-la num documento capaz de dar à liberdade um lugar não nulo — e falo de liberdade num sentido positivo e não de cláusulas de protecção de servos, prontas, aliás, para serem enterradas sob uma legislação luxuriante onde apenas dispendiosos holofotes legais permitem enxergar alguma coisa. Porque os servos nunca estão realmente protegidos. Mais fácil é estarem iludidos enquanto marcham para o Socialismo ou, mas prosaicamente, para o Centro de Saúde, e enquanto os ilustres defensores do exclusivismo financeiro do SNS se fazem tratar nas melhores clínicas privadas.
Todavia, bem mais urgente do que rever a Constituição, é rever a Infra-Constituição, ainda que a tarefa seja muito mais difícil. É que, se ninguém recita diariamente a Constituição, milhões repetem hora a hora os mantras dos ombros encolhidos e do “Tem de ser!” Se o leitor acha que a revolução armada é que é, experimente começar por uma revolução aparentemente mais prosaica mas, a prazo, não menos arriscada e cheia de consequências. Quando lhe disserem “Tem de ser!” pergunte:
Mas tem mesmo?
Os Portugueses entretêm-se soberanamente com estas encenações de inocência, de derrota e de servidão. Para acordá-los da sua representação, nada melhor do que umas boas vergastadas nietzscheanas. Aí está uma realidade servil a que não estão habituados! E atenção: a objecção não tem de ser moral! Longe disso. Ela é essencialmente vital e estética. Os voltejos de um homem persuadido de que é um servo sem o ser são feios. Empestam a atmosfera e matam a imaginação.

2010-08-06



[1] Ou “Tem que ser!”, na verdade a variante mais comum, apesar—ou por causa—da sua deselegância.
[2] Henry Miller, Complete Book of Friends, Allison & Busby, 1988, p. 306.
[3] Primeiro verso do Tao Te King.