Carta Aberta ao Presidente da República Portuguesa contra a Alteração à Lei da Nacionalidade, Lei n.º 37/81



Ex.º Sr. Prof. Marcelo Rebelo de Sousa,
Presidente da República Portuguesa

Palácio de Belém
Calçada da Ajuda, nº 11
1349-022 Lisboa



Assunto: Alteração à Lei da Nacionalidade

No passado dia 12 de Dezembro de 2019, foi aprovado o Projecto de Lei 118/XIV da autoria dos deputados do grupo parlamentar do PCP, com os votos favoráveis de PS, BE, PCP, PAN, PEV, L, e os votos contra de 3 deputados do PS, PSD, CDS-PP, CH, IL. Na mesma data, o projecto de lei baixou à comissão de especialidade competente (Assuntos constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).
Como a Lei n.º 37/81 que visa alterar, o Projecto de Lei 118/XIV revestirá, a ser promulgado, a forma de lei orgânica, porquanto versa sobre a “aquisição, perda e reaquisição da cidadania portuguesa,” nos termos da alínea f) do Artigo 164.º, e do ponto 2. do Artigo 166.º da Constituição da República Portuguesa.
Considerando a importância do objecto da lei — a nacionalidade — e a primazia da lei orgânica no ordenamento jurídico da República Portuguesa, venho por este meio solicitar a atenção de V.ª Ex.ª para o que estimo serem as ameaças que as alterações introduzidas neste projecto de lei representam para a segurança nacional e para a segurança e bem estar dos cidadãos, assim como para a possível inconstitucionalidade de algumas delas.
  1. Entre outras alterações, o Projecto de Lei 118/XIV remove a condição do carácter legal da residência no território Português como um requisito para a obtenção da nacionalidade Portuguesa por parte de estrangeiros ou dos seus filhos (alteração à redacção da alínea f) do Artigo 1.º, revogação do ponto 4. do Artigo 1.º, e alteração à redacção da alínea b) do ponto 1. do Artigo 6.º), plasmando assim na lei orgânica da República a residência ilegal no território nacional como um requisito de acesso à nacionalidade.
  2. Numa outra alteração significativa, o Artigo 15.º, que na sua redacção anterior, remetia a definição da legalidade da residência no território Português para o ordenamento jurídico relevante e para a regularização administrativa pelas autoridades competentes da República Portuguesa, institui, nos termos do Projecto de Lei 118/XIV, uma definição de excepção da noção de “residência legal” cujas duas únicas condições expressas são (a) a presença física no território e (b) a ausência de medida de expulsão pendente. Não obstante esta nova definição limitar a sua aplicação à “presente lei” (i.e. A Lei n.º 37/81), é importante sublinhar que se trata de uma lei orgânica à qual deverá subordinar-se toda e qualquer lei ordinária ou decreto-lei que incidam sobre a sua esfera de aplicação. Esta definição prefigura, por isso, a impossibilidade lógica e legal da aplicação da medida de expulsão por presença ilegal no território Português, uma vez que tal pressuporia a pendência da medida de expulsão em data anterior à da sua aplicação.
    1. Em directa contradição com o dever, que a Constituição Portuguesa incumbe ao Estado, de assegurar a valorização permanente e a defesa do uso da língua Portuguesa (Artigo 9.º, alínea f)), o Projecto de Lei 118/XIV suprime completamente o conhecimento da língua portuguesa (revogação da alínea c) do Artigo 6.º da Lei n.º 37/81) como condição de acesso à nacionalidade, abrindo assim caminho à constituição de sociedades paralelas, estranhas à comunhão social e cultural com os demais cidadãos e alheias à participação num destino nacional partilhado.
    2. A alínea d) do Artigo 6.º da lei n.º 37/81, que vedava o acesso à nacionalidade a todo o indivíduo estrangeiro que tivesse sido “condenado, com trânsito em julgado da sentença, com pena de prisão igual ou superior a 3 anos,” foi igualmente revogada pelo Projecto de Lei 118/XIV. Se a reintegração de cidadãos condenados por crimes cuja gravidade mereça uma tal pena é uma necessidade e um bem reconhecidos pelos valores civilizacionais em que nos revemos, a pretensão de nos substituirmos nesse dever ao país de origem de um cidadão estrangeiro, mais do que leviana, no custo que impõe em riscos de insegurança acrescidos aos cidadãos da República Portuguesa, é contrária ao direito à segurança consagrado no ponto 1. do Artigo 27.º da Constituição Portuguesa.
    3. Finalmente, a mais incompreensível alteração à Lei n.º 37/81 pelo Projecto de Lei 118/XIV é a revogação da alínea e) do Artigo 6.º que impedia a concessão de nacionalidade a indivíduos que “constituam perigo ou ameaça para a segurança ou a defesa nacional, pelo seu envolvimento em actividades relacionadas com a prática do terrorismo, nos termos da respectiva lei.” É talvez redundante assinalar a um especialista em direito constitucional que a revogação da alínea e) do Artigo 6.º da Lei n.º 37/81 constitui uma afronta aberta à obrigação de defesa nacional que, nos termos do ponto 1. do Artigo 273.º da Constituição da República Portuguesa, cabe ao Estado Português, muito particularmente enquanto garante da “segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas” (Artigo 273.º, 2.). Todavia, não só posso como devo fazê-lo, uma vez que “a defesa da pátria é direito e dever fundamental de todos os Portugueses” (ponto 1. do Artigo 276.º da Constituição).
Muito embora o Projecto de Lei 118/XIV não tenha alterado ou revogado a menção (alíneas b) e d) do Artigo 9.º da Lei n.º 37/81) da condenação a pena igual ou superior a 3 anos ou do envolvimento em actividades relacionadas com a prática do terrorismo como fundamentos da oposição à aquisição da nacionalidade por parte do Ministério Público (ponto 1. do Artigo 10.º da Lei n.º 37/81), a limitação do acesso à nacionalidade por parte destas categorias de estrangeiros deixa de ser sistemática para passar a depender da iniciativa de um órgão do Estado confrontado com um número muito elevado de processos (actualmente, bem mais de 100 mil por ano) e dispondo de uma janela temporal muito estreita (apenas um ano), após a qual, dada a revogação das alíneas d) e e) do Artigo 6.º da Lei n.º 37/81, a concessão da nacionalidade Portuguesa não poderá mais ser declarada nula, mesmo para quem venha a descobrir-se ter sido sujeito a pena de prisão de 3 ou mais anos ou ter estado envolvido em actividades de terrorismo.
Na sua presente forma, e considerando a votação que o aprovou na generalidade, o Projecto de Lei n.º 118/XIV nunca poderia reunir o voto favorável dos dois terços dos deputados da Assembleia da República necessários para a aprovação de uma lei orgânica vetada pelo Presidente da República. Apelo a V.ª Ex.ª para que, na qualidade de defensor da Constituição e representante político máximo do povo Português, vete este diploma inconstitucional e profundamente contrário à segurança, à coesão e à prosperidade futura da nossa Pátria.



O cidadão,



Miguel Montenegro, 23 de Dezembro de 2019




PS — Informo lealmente V.ª Ex.ª de que, paralelamente ao presente envio, esta carta será também tornada pública como Carta Aberta ao Presidente da República Portuguesa e disponibilizada para o eventual envio por outros signatários que assim o desejem fazer a título pessoal.